Este trabalho constitui uma reflexão sobre a etapa inicial da pesquisa que realizo atualmente no programa de Mestrado em Música da UNICAMP, sob a orientação do Prof. Dr. Paulo Tiné. Esta pesquisa busca entender a relação entre o modalismo melódico tradicional nordestino e a harmonização destas melodias, utilizando processos nãofuncionais derivados da saturação de acordes provenientes do jazz pós-bebop das décadas de 1950 y 1960, para logo, partindo desta relação, buscar um entendimento da mistura de tudo que constitui a proposta estética de Hermeto Pascoal. Devido ao foco nas relações entre melodia e harmonia, o formato leadsheet foi escolhido como ideal para a realização da análise; para isso utilizamos os dois cadernos de partituras de Hermeto Pascoal editados por Jovino Santos Neto (SANTOS NETO, 2001 y 2006), sendo selecionadas as obras gravadas por Hermeto Pascoal e Grupo, permitindo assim a comparação do registro em partitura com o fonograma. Logo desta definição, iniciamos o processo de análise com a obra Lá na casa da madame eu vi, que consta do caderno de partituras Hermeto Pascoal: 15 scores (SANTOS NETO, 2006), gravada no disco Hermeto Pascoal e Grupo (PASCOAL, 1982).
Partindo da definição proposta por Paulo Tiné (TINÉ, 2008), pudemos reconhecer na melodia desta obra, além do uso do 5º modo diatónico (mixolídio) sobre a fundamental Re, tanto em sua forma pura como híbrida (mixolídio com 4ª aumentada), os traços cadenciais característicos dos procedimentos modalizadores, como o 6+1 (movimento ascendente da sexta à fundamental) ou 3-2-1 (movimento descendente por grau conjunto da terça à fundamental. Por outro lado, em sua harmonização observam-se sequências de acordes que, ainda que construídas por sobreposição de terças diatônicas, não correspondem à estrutura esperada por sua posição no campo harmônico, e tampouco seguem o movimento habitual na prática da música tonal (MASON, 2013: 23). Desta forma predominam acordes construídos sobre fundamentais pertencentes aos modos de Re maior, Re mixolídio e Re dórico, com o tipo de acorde transformado através do procedimento de afastamento definido como Picardia (TINÉ, 2014: 116), e são evitadas as relações tonalizantes de Dominante – Tônica com o uso da suspensão da terça (acordes sus4) nos acordes de sétima menor.
Propomos a leitura da convivência destes elementos de origens distintas na melodia e harmonia desta obra a partir do conceito de fricção de musicalidades (PIEDADE, 2013: 5).
Entendendo musicalidade como uma memória musical-cultural compartilhada por uma determinada comunidade, possibilitando a comunicação de seus integrantes através da música, consideramos que a trajetória profissional de Hermeto o levou a incorporar diversas musicalidades, elaborando sua estética a partir da mistura das mesmas sem por isso gerar uma fusão, ou seja, deixando clara a origem de seus elementos, como observado nas relações entre melodia e harmonia de Lá na casa da madame eu vi.